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SEXUALIDADE E AFETIVIDADE MEDIADA PELA TECNOLOGIA EM TEMPOS EFÊMEROS

  • Foto do escritor: Diálogos Humanistas
    Diálogos Humanistas
  • 20 de ago. de 2018
  • 6 min de leitura

Por Iolanda Aguiar e Oliveira

20/10/2018

Atuo em psicoterapia há tempo suficiente para ter visto nascer os aplicativos de relacionamento de dentro do meu consultório. Em meados da minha adolescência os chats ou salas de bate-papo começaram a aparecer e eu mesma fiz uso delas como forma de entretimento. Era divertido conhecer novas personas. Nesses espaços virtuais residia um mistério: sabia-se que do outro lado havia uma pessoa, mas nunca havia a certeza se essa pessoa era ela mesma ou uma personagem. Ela poderia ser de qualquer lugar do mundo, poderia ter infinitas possibilidades de história de vida, qualquer idade, qualquer personalidade, assim como poderia ser ela mesma. Nunca se poderia afirmar. Por essa razão, eram relacionamentos com pessoas virtuais. Nem seus nomes eram seus. Nem os nomes eram nomes, eram nicknames, ou seja, apelidos. Cada nova relação estabelecida era um universo complexo de infinitas possibilidades.

Àquela altura da vida eu ainda estava experimentando diversos jeitos de ser na tentativa de me construir enquanto pessoa. Então, muitas vezes, eu era nessas relações a pessoa que eu considerava ideal. Exacerbava as características que eu valorizava em mim e omitia, ou distorcia, aquelas que eu não apreciava. Porém, muitas vezes eu fui eu mesma, da melhor maneira que podia sê-lo. Quem interagia comigo, porém, dificilmente conseguiria fazer essa distinção. Acredito que muitos, senão todos, agiam como eu. Era um mistério para todos os envolvidos.

Era exatamente a falta de condições de se estabelecer certezas sobre quem falava (ou teclava, como era a expressão usada) que tudo isso também era muito perigoso. Era perigoso em muitos aspectos, eram riscos de menores ou maiores proporções que se corria. Existiam aquelas pessoas que se valiam dessas ferramentas para fazerem vítimas como também haviam aquelas que apenas buscavam uma oportunidade de se relacionar. Essa busca por um relacionamento, quer seja afetivo-sexual ou não, era uma relação muito arriscada. A probabilidade de sofrer uma decepção era tão alta quanto a probabilidade de decepcionar.

A grande chance de se viver ou fazer viver uma expectativa frustrada e uma idealização desiludida é que fazia com que frequentemente as relações permanecessem virtuais: eram relações em potencial, mas não eram reais. Elas permaneciam sob o intermédio da tela do computador, que funciona como um escudo ou um muro, por trás do qual a pessoa se protegia. Se mesmo os relacionamentos reais são um risco, os virtuais não poderiam ser diferentes.

A evolução da tecnologia reduziu nosso computadores a smartphones e transformou as salas de bate-papo em aplicativos de relacionamento. Assim, os modos de se relacionar ganharam nova forma. Mesmo aplicativos dedicados às simples trocas de mensagens redefiniram os contatos humanos.

Me lembro, por exemplo, de uma adolescente que chegou ao consultório para fazer terapia por que ela experimentava uma grande dificuldade de se envolver com as pessoas. Era tímida, fechada, não conseguia tomar a iniciativa de estabelecer um primeiro contato e quando as pessoas vinham em sua direção ela experimentava um certo tipo de paralização, e, assim, não conseguia estabelecer diálogos e, logo, não estabelecia relacionamentos. Ela chegava para as sessões silenciosa, sua fala era quase monossilábica, mas quando ela chegava em casa, me mandava várias mensagens dizendo sobre como se sentia e sobre sua frustração de não conseguir se abrir em terapia. Mesmo no consultório, onde se estabelecem as melhores condições para um relacionamento emergir, ela não se sentia encorajada a ser quem era – ou talvez nem mesmo conseguia fingir ser outra pessoa. Contudo, na segurança de sua casa, distante da minha presença física e protegida pela tela do celular, ela se revelava.

Foi pessoalmente difícil testemunhar a dificuldade que essa adolescente, assim como tantas outras pessoas, tinha de existir plenamente. Não faço objeção aos mecanismos de relacionamento virtuais. Negá-los seria como remar contra a maré – sua existência é inevitável e, nos tempos hipermodernos, negá-la seria um suicídio social. Eu vejo as redes sociais, os aplicativos de relacionamento e afins com muitas críticas, mas também os vejo como possibilidade de existir para aquelas pessoas que vivem tantas limitações no campo afetivo. Se não houvesse a possibilidade do relacionamento virtual, provavelmente algumas pessoas mal se relacionariam. Porém, mesmo compreendendo que há virtudes nessa nova configuração relacional, é inevitável observar os impactos que elas causam.

Um impacto inegável e muito visível é o esvaziamento das relações. Existem aplicativos dedicados exclusivamente a favorecer a busca por parceiros sexuais. Quando começaram a ganhar popularidade, rapidamente chegou ao consultório relatos de relacionamentos ou contatos estabelecidos por intermédio destes aplicativos. Num deles, as pessoas acrescentam suas fotos e descrevem brevemente o seu perfil. Vários perfis são apresentados conforme a localização geográfica e as preferências do usuário. Em seguida, os perfis são avaliados de acordo com o interesse em se estabelecer uma conversa e, na melhor das hipóteses, evoluir para um encontro face a face. Se houver compatibilidade, ou seja, se ambos demonstrarem interesse mutuamente pelo perfil um do outro, uma oportunidade para interação é providenciada pelo software.

A disposição do aplicativo se assemelha a uma vitrine ou uma arara de uma loja de roupas em que se passa peça por peça na expectativa de encontrar alguma que lhe interesse adquirir. Não seria estranho que num mundo consumista os relacionamentos tenham ganhado um modo consumista de se fazer. Vale mencionar que muitas pessoas se valem desses aplicativos não para estabelecer um relacionamento, mas para buscar outra pessoa interessada em compartilhar uma experiência sexual pontual, sem a expectativa ou desejo de que dessa troca saia uma relação plena e madura. Nessas situações, a pessoa do outro lado pouco importa. O que importa são os corpos dispostos a consumir uns aos outros. Não há, portanto, nessa relação projeção no tempo: o importante é o vivido no momento presente que tem significado perene, efêmero.

A efemeridade sexual não é consequência do uso de aplicativos, a meu ver. Eles são apenas facilitadores da concretização desse fenômeno. Houve um tempo em que para se chegar aos fins pretendidos, era preciso se expor um tanto mais. A pessoa que tinha interesses sexuais noutra pessoa, precisava encarar, literalmente, o risco de ser rejeitada. Sem intermédio de aplicativos, era preciso se aproximar fisicamente, comunicar seu interesse e correr o risco de ouvir uma resposta negativa. Conforme a disposição da pessoa que convidava a outra para uma experiência sexual, essa frustração poderia ser extremamente dolorosa. No universo dos aplicativos, não é uma pessoa quem rejeita, mas um perfil. E assim ainda se economiza o constrangimento experimentado de um “não” dito pela boca, pelo corpo, pelo olhar, pela entonação do outro.

Aquelas que buscam um relacionamento autêntico, por outra perspectiva, estão dispostas a um risco maior. Querem envolver numa troca com o outro mais do que seus corpos, mas suas emoções. Querem encontrar um relacionamento virtual com verdadeiro potencial de se transformar em realidade. Desse modo, fotos e descrições de características são insuficientes para assegurar o êxito desse envolvimento. É preciso sair da tela do celular e buscar contato.

No contato físico, pessoal, direto há a possibilidade de se verificar como o outro lhe afeta. O cheiro, o som da voz, o corpo, o jeito de ser, os valores, os princípios, a história. Tudo afeta. E esse afetar-se pode se dar de um jeito que o convida a afetar-se ainda mais ou de um jeito que o convida a retirar-se dessa pretensa relação. Assim, em primeiro lugar verifica-se com o uso do aplicativo a compatibilidade de perfis para depois se investigar a compatibilidade entre pessoas. Os seres humanos são tão infinitamente diversos que a probabilidade de a compatibilidade entre pessoas ocorrer é pequena. Se ela não acontecer, o encontro entre as pessoas se acaba hoje e amanhã o aplicativo oferece em suas vitrines novas possibilidades. Porém, nem sempre se experimenta essa incompatibilidade com serenidade na alma. Repetidos encontros fracassados, causam dor, sentimento de inadequação, medo de estar condenado à solidão, dentre outros mal-estares.

Se comparada à maneira como a busca por um parceiro romântico se dava em épocas não tão longínquas, nos tempos atuais verifca-se a sequência invertida dos fatos a com a existência dos aplicativos. Antes, era primeiro preciso que as pessoas cruzassem caminhos na vida real, para depois serem afetadas umas pelas outras e, quem sabe, haver um envolvimento sexual. E se não desse certo, era preciso torcer para que a vida fizesse com que novos encontros acontecessem espontaneamente.

Tudo isso caracteriza, a meu ver, o consumismo dos tempos atuais. Na vida prática, aquilo que se adquire e que não agrada ou não é útil mais, descarta-se. Nas relações contemporâneas, a pessoa a qual se encontra e não interessa, dispensa-se. Eu vivi para assistir os modos de relacionamento transformarem-se. Portanto, pude testemunhar diversas formas de relacionar-se e seus efeitos. Me pergunto, assim, sobre como se configurarão os relações para gerações que nasceram ou nascerão num mundo em que essas ferramentas são recurso disponível, senão o mais difundido. Por isso, me preparo também para conviver com os impactos que já assisto e também assistirei emergir nas vidas daqueles que se sentam em meu consultório. Me pergunto, também, quanto tempo demorará para que a relação terapêutica também seja definitivamente atravessada pela tecnologia e, com isso, me pergunto qual será o lugar dos afetos tão necessários às relações de ajuda.

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